quarta-feira, 6 de junho de 2012

COMO AS CÉLULAS SE COMUNICAM



       No reino animal, quanto mais "superior" é o organismo, mais importante se torna o sistema de células Incumbido da coordenação das suas atividades. A natureza desenvolveu dois mecanismos distintos de coordenação. Um deles depende da liberação e circulação de "mensageiros químicos", os hormônios, que são manufaturados por determinadas células especializadas e são capazes de regular a atividade de células situadas em outras partes do corpo. Um segundo mecanismo, em geral muito superior em velocidade e seletividade, depende de um sistema especializado de células nervosas, ou neurônios, cuja função é receber e dar instruções por meio de impulsos elétricos, conduzidos por caminhos específicos1. Ambos os mecanismos coordenadores são antigos do ponto de vista evolutivo, mas foi o segundo, o sistema nervoso, que se prestou ao desenvolvimento evolutivo, culminando nesta estrutura maravilhosa e misteriosa, o cérebro humano.
(1  Atravessando as sinapses por meio de neurotransmissores químicos.)     A compreensão do trabalho dos seus milhões de células cerebrais pelo homem ainda se encontra num estágio primitivo. Entretanto, o nosso conhecimento está razoavelmente apropriado a uma tarefa mais restrita, que é a de descrever e explicar parcialmente como células individuais, os neurônios, geram e transmitem os impulsos elétricos que formam o elemento de código básico do nosso sistema de comunicação interno.
    Uma grande fração da população de células nervosas pode ser dividida em duas classes: uma sensorial e outra motora. Os neurônios sensoriais coletam e retransmitem aos centros superiores no sistema nervoso os impulsos que se originam em sítios receptores especiais (ver Miller, Ratcliff e Hartline em "Como as Células Recebem Estimulos", outra referência neste passo 1), cuja função é controlar os meios interno e externo do organismo. Os neurônios motores carregam impulsos dos centros superiores para as células "trabalhadoras", geralmente células musculares2, que fornecem as respostas do organismo a mudanças nos dois meios. Em reações reflexas simples, a transferência de sinais dos neurônios sensoriais aos motores é automática e envolve mecanismos sinápticos relativamente simples, razoavelmente bem compreendidos.
(2 Ou células endócrinas secretoras.)
    Quando uma célula nervosa, motora ou sensorial, começa a se diferenciar no embrião, o corpo celular emite uma longa fibra, o axônio, que de um modo desconhecido3 cresce em direção à sua própria posição periférica para fazer contato com o músculo ou com a pele (Figura 1). No homem, o axônio adulto pode ter vários pés de comprimento, embora tenha uma espessura menor que 0,001 polegadas. Forma uma espécie de cabo-miniatura para conduzir mensagens entre os terminais periférico e central, que fica protegido juntamente com o corpo da célula nervosa, dentro do canal  raquidiano  ou  do  crânio.  As  fibras  nervosas  periféricas
 
Fig. 1 - O neurônio motor é a célula nervosa que transporta os impulsos elétricos para ativar as fibras musculares. O corpo celular (no alto) se abre numa porção de ramos, os denditros, que fazem contato sináptico com outras fibras. Os impulsos nervosos que se originam no corpo celular viajam através do axônio até as terminações nas placas motoras, que estão encravadas nas fibras musculares. A bainha de mielina é formada por células de Schwann, como está ilustrado na figura 2. O envoltório de mielina isolando o axônio aumenta a velocidade de transmissão do sinal.
isoladas provavelmente foram submetidas a estudos experimentais mais intensos do que qualquer outro tecido, apesar do fato de serem apenas fragmentos de células separados de seus núcleos centrais tanto quanto das suas conexôes terminais. Mesmo assim, os axônios isolados são capazes de conduzir dezenas de milhares de impulsos antes de deixar de trabalhar4. Este fato e outras observações tornam claro que o corpo nucleado da célula nervosa está envolvido com a manutenção a longo prazo das fibras nervosas, com o crescimento e restauração mais propriamente do que com o mecanismo de sinalização imediata. (3  Progressos já são vistos em “Understanding the brain”, onde Eccles (1973) mostra interessantes descobertas de guias de crescimento neuronal.)
(4 Numa taxa de 10 impulsos por segundo, pode durar cerca de dezenas de horas.)
    Durante anos houve controvérsia sobre se o nosso conceito fundamental da existência de unidades celulares individuais poderia ou não ser aplicado ao sistema nervoso e às suas conexões funcionais. Alguns pesquisadores acreditavam que a célula nervosa em desenvolvimento literalmente crescesse para o citoplasma de todas as células com que estabelece uma relação funcional. O assunto não pôde ser resolvido de modo convincente até o advento da microscopia eletrônica de alta resolução. Foi então revelado que a maior parte da superfície de uma célula nervosa, inclusive todas as suas extensões, se encontra, na realidade, intimamente revestida e envolvida por outras células, mas que o citopplasma das células adjacentes pemanece separado por membranas distintas. Ademais, existe uma pequena fenda extracelular, geralmente de 100 a 200 ângstrons, entre membranas celulares
adjacentes (figura 2).
    Parte destes contatos celulares constitui sinapses funcionais: pontos em que os sinais são transferidos de uma célula ao elo seguinte da cadeia. Entretanto, são encontradas sinapses somente no corpo celular do neurônio ou perto dele e nosterminais do axônio. A maioria das células revestidoras, particularmente aquelas que aderem ao axônio, não são absolutamente células nervosas. A sua função ainda permanece um quebra-cabeça. Algumas destas células satélites são chamadas decélulas de Schwann, outras, células da glia; elas não parecem tomar parte alguma no processo imediato da transmissão do impulso, exceto talvez indiretamente,modificando o caminho do fluxo de corrente elétrica ao redor do axônio. É significativo, por exemplo, que sejam encontrados muito poucos satélites dispersos nas superfícies celulares expostas das fibras musculares, que se parecem muito com as fibras nervosas pela sua habilidade em conduzir impulsos elétricos de uma extremidade à outra.
    Uma das funções conhecidas dos axônios satélites é a formação da chamada bainha de mielina, uma jaqueta isolante segmentada que garante a eficiência de sinalização das fibras nervosas periféricas dos animais vertebrados. Sabemos agora que cada segmento de mielina é produzido por uma célula de Schwann, nucleada, que serpeia o seu citoplasma firmemente em volta da superfície do axônio, formando um envoltório espiralado de muitas voltas (Figura 2). Os segmentos estão separados por intervalos, os nós de Ranvier, que marcam, ao longo do axônio, os pontos onde o sinal elétrico é regenerado (Figura 1).
 
Fig. 2 - A bainha de mielina é formada quando uma célula de Schwann se enrola ao redor do axônio. Depois que se completa o envolvimento, o citoplasma da célula de Schwann é expelido e as membranas celulares dobradas se fundem num invólucro resistente e compacto.
    Há outros tipos de fibras nervosas que não têm bainha de mielina. porém mesmo estas estão cobertas por camadas simples de células de Schwann. Talvez porque o axônio se estenda até tão longe do núcleo da célula nervosa, requeira ele uma associação próxima com células satélites nucleadas ao longo de todo o seu comprimento. As fibras musculares, diferentemente dos axônios isolados, são células autônomas, com núcleos distribuídos pelo seu citoplasma, fato que pode explicar por que estas fibras conseguem existir sem uma camada de revestimento de células satélites. Qualquer que seja a função das células satélites, elas não podem manter a vida de um axônio por muito tempo, uma vez que ele tenha sido separado do corpo celular principal; depois de alguns dias, o segmento periférico da célula nervosa se desintegra. Como o núcleo da célula age como um centro de reparos vitalício e faz com que a sua influência se mantenha até nas partes distantes do axônio, o que em termos de difusão normal estaria anos distante. A explicação permanece um mistério5 . (5 Houve recentemente um avanço nestas pesquisas de sobrevida celular. Mais informações podem ser achadas nas páginas www.icb.ufmg.br/pat/apoptose.html que trata da morte celular.)
    Os métodos experimentais da fisiologia têm tido muito mais sucesso ao tratar dos processos imediatos de comunicação nervosa do que com os acontecimentos a longo prazo, igualmente importantes, porém muito mais inacessíveis. Sabemos muito pouco sobre as interações químicas entre nervo e satélite, ou sobre as forças que guiam e atraem nervos em crescimento ao longo de vias específicas e que induzem à formação de contatos sinápticos com outras células. Tampouco sabemos como as células armazenam informações e nos proporcionam a memória. O restante deste artigo, portanto, dirá respeito quase que exclusivamente aos sinais nervosos e à maneira pela qual atravessam as estreitas fendas sinápticas que separam uma célula nervosa de outra.
    Grande parte do nosso conhecimento sobre a célula nervosa foi obtida do axônio gigante da lula, que tem quase um milímetro de diâmetro. É razoavelmente fácil investigar esta vantajosa fibra com microelétrodos e seguir o movimento de substâncias, radiativamente marcadas, para dentro e para fora dela. A membrana do axônio separa duas soluções aquosas que são quase igualmente eletrocondutivas e que contém aproximadamente o mesmo número de partículas eletricamente carregadas, ou íons. Entretanto, a composição química das duas soluções é bastante diferente. Na solução externa, mais de 90 por cento das partículas carregadas são íons de sódio (carregados positivamente) e íons cloreto (carregados negativamente). Dentro da célula, êstes íons, em conjunto, respondem por menos de 10 por cento dos solutos; aí o principal íon positivo é o potássio e os íons negativos são uma variedade de partículas orgânicas, sem dúvida sintetizadas dentro da própria célula, que são grandes demais para se difundir facilmente através da membrana do axônio. Portanto, a concentração de sódio é cerca de 10 vêzes mais alta fora do axônio e a concentração de potássio é cerca de 30 vêzes mais alta dentro do axônio. Embora a permeabilidade da membrana a íons seja baixa, ela não é indiscriminada; os íons potássio e cloreto podem movimentar-se através da membrana muito mais facilmente do que os íons de sódio e os grandes íons orgânicos. Isto origina uma queda de voltagem de cerca de 60 a 90 miliVolts através da membrana, sendo o interior da célula negativo em relação ao exterior.
    Para manter estas diferenças na concentração iônica, a célula nervosa possui uma espécie de bomba que força a "ascensão" e saída dos íons de sódio através da membrana celular tão rapidamente quanto escoam para dentro da célula6, em direção ao gradiente eletroquímico (Figura 3). A permeabilidade da superfície celular em repouso ao sódio é normalmente tão baixa que a taxa de fluxo permanece muito pequena, e o trabalho exigido pelo processo de bombeamento equivale a apenas uma fração de energia que está continuamente sendo tornada disponível pelo metabolismo da célula. Não sabemos em detalhes como trabalha esta bomba, mas parece que seleciona íons de sódio e potássio. Uma vez transportados para dentro do axônio, os íons de potássio se movimentam lá dentro de um lado para outro tão livremente quanto os íons de qualquer solução salina. Quando a célula está em repouso, eles tendem a escoar "ladeira abaixo" e para fora através da membrana, mas numa taxa vagarosa.
(6 Sabe-se hoje que a reposição da bomba sódio/potássio é muito mais lenta do que os efeitos imediatos da variação das permeabilidades de sódio  e de potássio.)
 
Fig. 3 - “A bomba de sódio”, cujos detalhes são desconhecidos, é necessária para expelir os íons sódio do interior do axônio nervoso, de tal modo que a concentração interior de íons seja mantida a cerca de 10% da do fluido exterior. Ao mesmo tempo, a bomba faz com que os íons de potássio “ascendam” de uma concentração externa baixa a uma concentração interna 30 vezes mais alta. A velocidade de bombeamento precisa manter-se com o escapamento de “declive” dos dois tipos de íons. Uma vez que ambos estão carregados positivamente, os íons de sódio têm maior velocidade de escapamento (expressa em termos de milivolts de força diretriz), porque são atraídos ao interior do axônio, negativamente carregado, enquanto os íons de potássio tendem a ser retidos. Mas mesmo assim existe um nítido escoamento de potássio para fora devido sua maior permeabilidade.
    A membrana do axônio assemelha-se às membranas de outras células. Tem cerca de 50 a 100 ângstrons de espessura e incorpora uma fina camada de material graxo isolante. A sua resistência especifica à passagem da corrente elétrica é pelo menos 10 milhões de vezes maior do que a das soluções salinas que a banham de cada lado. De outra parte, o axônio seria bastante inútil se fosse empregado simplesmente como o equivalente de um cabo elétrico. A resistência elétrica do fluido interior do axônio é cerca de 100 milhões de vêzes maior do que a de um fio de cobre, e a membrana de axônio é cerca de um milhão de vezes mais permeável à corrente elétrica do que o revestimento de um bom cabo. Se um pulso elétrico, fraco demais para disparar um impulso nervoso, for lançado num axônio, o pulso se enfraquece gradualmente e se neutraliza depois de percorrer somente alguns milímetros.     Como, então, pode a axônio transmitir um impulso nervoso ao longo de vários "pés", sem amortecimento e sem distorção? À medida que se aumenta a intensidade de um sinal de voltagem. aplicado sobre a membrana de uma célula nervosa, alcança-se um ponto em que o sinal não mais se enfraquece e morre. Pelo contrário, se a voltagem for do sinal certo, ultrapassa-se um limiar e a célula se torna "excitada" (Figura 4)7. O axônio da célula não mais se comporta como um cabo passivo. mas produz um pulso de corrente extra, próprio, que amplifica o pulso original aplicado. O pulso amplificado, ou "spike" se regenera ponto por ponto, sem amplitude e perda de amplitude e caminha numa velocidade constante ao longo de todo o comprimento do axônio. A velocidade de transmissão nas fibras nervosas de vertebrados varia de alguns poucos metros por segundo, no caso de fibras finas, não mielinizadas, até cerca de 100 metros por segundo, no caso das fibras mais grossas mielinizadas. As mais altas velocidades, equivalentes a cerca de 200 milhas por hora, são encontradas nas fibras sensoriais e motoras, relacionadas com o equilíbrio corporal e com movimentos reflexos rápidos. Depois de transmitir um impulso, o nervo fica brevemente em estado refratário, ou inexcitável, mas, dentro de um ou dois milissegundos, está pronto a disparar novamente.
(7 Atenção, na propagação do potencial de ação a carga positiva é alimentada na vizinhança pela atração da mesma pelas cargas negativas lá existentes, deslocando-se pela lei de atração de cargas (lei de Coulomb, ver animação abaixo).
    Os acontecimenlos eletroquímicos que fundamentam o impulso nervoso, ou potencial de ação, como é chamado, foram grandemente esclarecidos nos últimos quinze anos. Como vimos, a diferença de voltagem através da membrana é determinada em grande parte pela permeabilidade diferencial da membrana aos íons de sódio e potássio. Muitos tipos de membranas seletivas, naturais ou
A investigação da fibra nervosa é realizada com dois microeletrodos.Um deles fornece o pulso de estimulação, o outro mede as mudanças do potencial da membrana (ver abaixo).
 
 
Fig. 4 - As propriedades elétricas da fibra nervosa são elucidadas pela medida das mudanças de voltagem na membrana do axônio, à medida que são aplicados pulsos de estimulação de diversas intensidades. No estado de repouso, o interior do axônio está negativo de aproximadamente 80 milivolts. Os pulsos de estimulação subliminares (à esquerda e à direita, em cima) elevam o potencial momentâneamente. Pulsos maiores conduzem o potencial ao seu limiar, onde ele se torna instável, ou baixando (à esquerda, embaixo), ou explodindo num potencial de ação (à direita, embaixo) com uma duração variável (linha interrompida).
artificiais, apresentam tais diferenças. O que torna a membrana nervosa característica é o fato de que a sua permeabilidade é por sua vez regulada pela diferença de voltagem através da membrana, e esta peculiar influência mútua é, de fato, a base do processo de sinalização8.
(8 No caso da propagação do potencial de ação.)
    A. L. Hodgkin e A. F. Huxley, da University of Cambridge, demonstraram que a diferença de voltagem através da membrana aumenta imediatamente a sua permeabilidade ao sódio. Não sabemos por que o isolamento iônico da membrana se altera desta maneira específica, mas as conseqüências são de longo alcance. À medida que os íons de sódio com suas cargas positivas escapam através da membrana, cancelam no local parte do excesso de carga negativa dentro do axônio, reduzindo assim, ademais, a queda de voltagem através da membrana. Trata-se de um processo regenerativo que conduz a um auto-reforço automático; o fluxo de alguns íons de sódio através da membrana facilita a outros que venham em seguida. Quando a queda de voltagem através da membrana estiver sendo reduzida ao nível do limiar, os íons de sódio entram em tal número que mudam o potencial interno da membrana de negativo para positivo: o processo "entra em ignição" no limiar e se inflama, criando o impulso nervoso, ou potencial de ação. O impulso, que aparece como um pico no osciloscópio, muda a permeabilidade da membrana do axônio imediatamente à sua frente, por ter o potencial atingido o limiar, e estabelece as condições para que o sódio flua para dentro do axônio, repetindo todo o processo regenerativo numa onda progressiva até que o pico tenha percorrido todo o comprimento do axônio (Figura 5).
    Imediatamente em seguida ao pico da onda, estão ocorrendo outros acontecimentos. As "portas do sódio", que se tinham aberto durante a ascensão do pico, fecham-se novamente e as "portas do potássio" são abertas por curto tempo. lsto ocasiona uma rápida saida dos íons de potássio positivos, o que restabelece a carga original negativa do interior do axônio. Durante alguns milissegundos depois que a voltagem da membrana foi levada ao seu nível inicial, torna-se difícil deslocar a voltagem e estabelecer um outro impulso. No entanto. as permeabilidades iônicas retornam rapidamente à sua condição inicial e a célula está pronta para disparar outro impulso. A afluência de íons de sódio e a subseqüente saída de potássio é tão breve e envolve tão poucas partículas que a composição interna global do axônio não é afetada. Mesmo sem reabastecimento, a reserva de íons de potássio dentro do axônio é suficiente para proporcionar dezenas de milhares de impulsos. No organismo vivo, o sistema enzimático celular que dirige a bomba do sódio não encontra dificuldades em manter os nervos em condições de contínuo disparo. O intrincado processo, que consiste na condução de sinais através de um cabo mal vedado, acoplado a uma elevação de tensão repetida e automática ao longo da via de transmissão, supre as necessidades de comunicação a longa distância do nosso sistema nervoso. Impõe uma certa forma estereotipada de '"código" nos nossos canais de sinalização: pulsos curtos de amplitude quase constante, seguindo-se um ao outro a intervalos variaveis, limitados apenas pelo período refratário da célula nervosa. Para compensar as limitações deste sistema de código simples, grande número de canais de axônios, cada qual numa célula nervosa separada, são providenciados e dispostos paralelamente. Por exemplo, no tronco do nervo óptico que emerge do olho, há mais de um milhão de canais correndo muito junto uns aos outros, todos capazes de transmitir sinais separados aos centros superiores do cérebro.
    Voltemos agora à questão do que acontece numa sinapse, o ponto em que o impulso alcança o fim de uma célula e encontra uma outra célula nervosa. O processo de cabo auto-amplificador, que funciona dentro dos limites de qualquer célula, não está destinado a saltar automaticamente por sobre a margem para células adjacentes. Na verdade, se houvesse tal "linha cruzada" entre canais adjacentes, por exemplo, entre as fibras dispostas densamente juntas nos nossos feixes nervosos, o sistema se tornaria totalmente inútil. É verdade que, em contatos sinápticos funcionais, a separação entre as membranas celulares varia de apenas
 
Fig. 5 - A propagação do impulso nervoso coincide com mudanças da permeabilidade da membrana do axônio. Normalmente, o interior do axônio é rico em íons potássio e pobre em íons sódio; o fluido exterior tem uma composição inversa. Quando surge um impulso nervoso, tendo sido disparado no limiar, escancara-se uma “porta” que deixa os íons sódio fluírem para dentro do axônio, que é atraído à frente do impulso, tornando a vizinhança do axônio localmente positivo, onde dispara de novo o potencial de ação (de 1 para 2)9. Depois do impulso, fecha-se a porta do sódio e abre-se a do potássio, permitindo aos íons potássio que fluam para o exterior, restaurando o potencial negativo normal. À medida que o impulso nervoso se desloca ao longo do axônio, ele deixa a parte de trás do axônio num estado refratário por curto tempo, depois do qual pode sucedê-lo um segundo impulso (3).
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 (9 O deslocamento do impulso nervoso ao  longo do axônio se dá pelo efeito de atração de cargas opostas dentro do axônio, que é um meio bom condutor de eletricidade. Antes da abertura dos canais de sódio, as cargas se atraiam, mas não se deslocavam, porque eram separadas pela membrana, que é isolante elétrica. Assim o sódio (+) é atraído pelas cargas negativas (-) predominantes à frente (Ver animação da Lei de Coulomb na página anterior). Aí vão concentrando-se cargas (+), fixadas pelas negativas do outro lado da membrana, ocorrendo um aumento da despolarização, que ao atingir o nivel do limiar, dispara de novo  o impulso nervoso. Tem-se a impressão que foi o mesmo impulso nervoso que caminhou para a vizinhança, mas na relidade ele se recriou). 100 a algumas poucas centenas de ângstrons. No entanto, a partir do que sabemos sobre as dimensões da área de contato e sobre as propriedades isolantes das membranas celulares, é pouco provável que possa existir uma conexão de cabos eficiente entre a terminação de uma célula nervosa e o interior da sua vizinha. Pode-se facilmente demonstra-lo fazendo-se passar um pulso subliminar, isto é, um pulso que não dispara um pico, através da sinapse que separa um nervo motor de uma fibra muscular. Um registro localizado exatamente dentro do músculo não detecta sinal nenhum quando um pulso fraco é aplicado ao nervo motor perto da sinapse. Logicamente, a ligação do cabo está interrompida na região da sinapse e algum outro processo deve tomar o seu lugar.
    A natureza deste processo foi descoberta há cerca de 25 anos por Sir Henry Dale e seus colaboradores, no National Institute for Medical Research em Londres. Sob alguns aspectos, ele se parece ao mecanismo hormonal mencionado no início deste capitulo. Os terminais do nervo motor agem mais própriamente como glândulas secretando um mensageiro químico. Com a chegada de um impulso, os terminais libertam uma substância especial, a acetilcolina, que rápida e eficientemente se difunde através da fenda sináptica. As moléculas de acetilcolina se combinam com moléculas receptoras na área de contato da fibra muscular, e, seja como for, abrem suas portas iônicas, permitindo que o sódio entre e dê início a um impulso. O mesmo resultado pode ser obtido aplicando-se artificialmente acetilcolina à região de contato da fibra muscular. É provável que processos semelhantes de mediaçâo química tenham lugar na maioria dos contatos celulares do nossa sistema nervoso central. Entretanto, é bastante improvável que a acetilcolina seja o mediador universal em todos estes pontos. Vários pesquisadores estão realizando uma busca intensiva de outras substâncias transmissoras de ocorrência natural.
    A transmissão sináptica apresenta dois conjuntos bastante distintos de problemas. Em primeiro lugar, como exatamente um impulso nervoso logra causar a secreção do mediador químico? Em segundo lugar, quais são os fatores físico-químicos que decidem se um mediador irá estimular a célula seguinte a excitar-se em alguns casos ou inibí-la da excitação em outros? Até agora nada dissemos sobre a inibição, embora ela ocorra por todo o sistema nervoso e seja uma das modalidades mais curiosas da atividade nervosa. A inibição ocorre quando um impulso nervoso atua como freio sobre a célula seguinte, impedindo-a de tornar-se ativada por mensagens excitatórias que possam estar chegando ao mesmo tempo por outros canais. O impulso que caminha ao longo de um axônio inibidor não pode ser distinguido eletricamente de um impulso que caminha por um axônio excitador. Todavia, o efeito fisico-químico que ele induz na sinapse deve ser de tipo diferente. Presumivelmente, a inibição resulta de um processo que, de algum modo, estabiliza o potencial da membrana da célula receptora e impede-a de ser conduzida ao seu limiar detonador, ou ponto de "ignição.
    Existem vários processos pelos quais se pode alcançar tal estabilização. Já mencionamos um deles; ocorre no período refratário, imediatamente após ter sido gerado um pico. Neste período, o potencial da membrana é levado a um nível alto e estável, cerca de 80 a 90 miliVolts dentro da membrana, porque, colocando o problema algo cruamente, as portas do potássio estão abertas amplamente e as do sódio, firmemente cerradas. Se a substância transmissora for capaz de produzir um destes estados de permeabilidade iônica ou ambos, ela indubitavelmente agirá como inibidor. Existem boas razões para acreditar que este é o modo pelo qual os impulsos do nervo vago retardam e inibem a pulsação cardíaca; incidentalmente, a substância transmissora liberada pelo nervo vago é mais uma vez a acetilcolina, conforme foi descoberto por Otto Loewi, 40 anos atras. Efeitos semelhantes ocorrem em várias sinapses inibitórias na medula espinhal, mas ali a natureza química do transmissor até agora escapou à identificação.
    No caso de dois axônios "antagônicos" convergirem para o mesmo ponto de uma terceira célula nervosa e soltarem moléculas quimicamente competidoras, teríamos como resultado novamente a inibição. Embora um exemplo natural deste tipo ainda não tenha sido demonstrado, o emprego químico e farmacológico de inibidores competitivos está bem estabelecido. Assim, por exemplo, o efeito paralisante da droga "curare" surge da sua ligação competitiva na região da fibra muscular, que normalmente é livre para reagir com a acetilcolina. Alternativamente, uma substância desprendida por uma terminação nervosa inibidora poderia agir sobre o terminal nervoso excitador de modo a reduzir o seu poder secretor, fazendo desse modo com que fosse desprendida uma menor quantidade da substância transmissora excitatória10.
(10 Este mecanismo é conhecido com inibição pré-sináptica.)
    Isto nos traz de volta à seguinte questão: Como leva o impulso nervoso à secreção de substâncias transmissoras?11 Experimentas recentes sobre a junção neuromuscular demonstraram que o efeito do impulso nervoso não é iniciar um processo de secreção, mas antes, alterando o potencial da membrana, modificar a taxa de um processo secretor que não pára nunca. Mesmo na ausência de qualquer forma de estimulação, lotes de acetilcolina são liberados por pontos discretos dos terminais do nervo, a intervalos casuais, cada lote contendo um grande número, provavelmente milhares de moléculas.
(11 Sabe-se que este processo é dependente da chegada do potencial de ação no botão pré-sináptico e é “catalizado”, facilitado, pela entrada de cálcio no botão pré-sináptico.)
    Cada vez que um destes "quanta" de moléculas transmissoras é espontaneamente desprendido, é possível detectar uma súbita e diminuta resposta local na fibra muscular do outro lado da sinapse. No intervalo de um milissegundo, dá-se uma queda de 0,5 miliVolt no potencial da membrana do músculo, que leva cerca de 20 milissegundos para se recuperar. Alterando-se sistematicamente o potencial da membrana da terminação nervosa, foi possívelcalcular a relação característica entre o potencial da membrana do terminal do axônio e a taxa de secreção dos lotes transmissores. Parece que a taxa de liberação aumenta de um fator de cerca de 100 vêzes para cada abaixamento de 30 miliVolts no potencial da membrana. Na condição de repouso há uma ejeção de aproximadamente um lote de moléculas por segundo em cada junção neuromuscular. Mas, durante a breve mudança de 120 miliVolts, associada ao impulso nervoso, a freqüência se eleva momentaneamente de quase um milhão, proporcionando uma liberação sincrônica de algumas centenas de lotes moleculares no intervalo de um milissegundo.
    É significativo o fato de que o transmissor seja liberado não em doses moleculares independentes, mas sempre em lotes multimoleculares de um tamanho-padrão. A explicação desta característica encontra-se provavelmente na constituição microestrutural dos terminais nervosos. Eles contém um acúmulo característico das chamadas vesículas, cada uma com um diâmetro de aproximadamente 500 ângstrons, que podem conter a substância transmissora já parcelada e pronta para ser liberada (Figura 6). É concebível que, quando as vesiculas colidem com a membrana do axônio, como deve acontecer amiúde, a colisão possa, às vezes, fazer com que o conteúdo vesicular se derrame na fenda sináptica. Tais idéias ainda têm que ser provadas por evidências diretas, mas fornecem uma explicação razoável de tudo a que se conhece sobre a liberação quântica espontânea de acetilcolina e sobre a sua liberação acelerada sob várias condições naturais e experimentais. De qualquer maneira, as idéias proporcionam interessante ponto de encontro entre os tratamentos funcional e estrutural de um problema comum.
Fig. 6 - A sinapse neuromuscular é o lugar em que o impulso nervoso ativa a contração de uma fibra muscular. Nesta fotomicrografia eletrônica, a região da sinapse está ampliada 53.000 vezes. A terminação do nervo motor ocorre diagonalmente a partir da esquerda inferior para a direita superior, estando ligada na ponta esquerda superior por uma célula de Schwann (este campo pré-sináptico aparece mais claro na foto). A fibra muscular é a área de estrias escuras da direita inferior, com uma membrana dobrada. O terminal nervoso (quadrante esquerdo no alto e centro, campo claro) está povoado por vesículas sinápticas”  que podem conter acetilcolina, a qual é liberada na fenda sináptica (canaleta que passa inclinada para a direita, entre o campo claro e o escuro) pela ação dum impulso nervoso e provoca a atividade elétrica no músculo.